JANUÁRIO E A MULA SEM CABEÇA
Era uma linda tarde de outono.
Januário aguardava ansiosamente a chegada do seu primo Beto. Que havia deixado a cidadezinha de Muzambinho ainda criança, para estudar no Rio de Janeiro.
Não tardou quando Januário viu a nuvem de poeira no horizonte. O que significava a aproximação de algum veículo motorizado.
O coração de Januário começou a bater mais forte, tamanha era sua ansiedade. E quando os olhos dele avistaram a tênue mancha amarela no meio da nuvem de poeira, confirmaram suas suspeitas. E logo o táxi estava parado à sua frente e Beto saltava um tanto desajeitado, com câimbras nas pernas por ter ficado longas horas sentado.
Januário correu apressado e tropeçou em uma pedra, caindo bem em frente do primo Beto. Que irrompeu em estridente gargalhada.
Januário levantou-se um tanto sem jeito, sacudiu a poeira e abraçou forte o primo, erguendo-o no ar, e disse sorridente: - Ara, primo, quanto tempo a gente num si vê!
Beto, um tanto formal, fica desconfortável com tamanha demonstração de afeto. Procura afastar-se e estende a mão para Januário. E diz secamente: - Como vai, primo?
Januário percebe o distanciamento do primo e sente um aperto no coração. E imagens da infância invadem sua mente e o fazem lembrar dos banhos nus de rio, da iniciação sexual com as vacas e cabritas, das pescarias e de todas as brincadeiras de criança. Mas, logo o saudosismo desaparece e Januário com seu jeito espontâneo, pega a bagagem do primo e diz: - Ara, primo... ocê ta danado de elegante. Num vai repará a casa humirde, vai?
Beto olha para o primo, um tanto constrangido com tanta gentileza e diz: - Bobagem, primo. Eu ainda sou o mesmo moleque que saiu daqui há vinte anos.
Januário passa o braço sobre o ombro de Beto e o conduz ao interior da modesta casa de estuque, coberta de sapê.
Logo que entram, Beto dá uma olhada no interior da casa e constata que os parcos móveis estão desgastados pelo tempo. Ao centro, há uma mesa que não vê verniz há vários anos, duas cadeiras nas mesmas condições, um banco de taboa encostado na parede do fundo e um lampião a querosene em um canto enegrecido pela fuligem.
Januário conduz Beto a um pequeno quarto onde há uma cama e um velho armário e diz cheio de si: - O primo pode guardá as ropa no armário. O cochão é veio, mas num tem percevejo... ta limpinho. O a cazinha fica la fora. Tem uma caxa no canto, cheia de sabugo de mio pra limpa o ... ocê sabe! Eu custumo tomá banho no rio, mai se o primo quizé, eu posso pega um barde dágua pro primo toma banho.
Mais tarde, la pelas oito da noite, Januário vira-se para o primo e diz: - Ó primo, eu queria sabê se o primo qué ir numa pescaria? – Claro, primo. Precisamos relembrar os velhos tempos. – Antão, vamo prepará o matriár e os lampião, que o cumpadi Zé Matia já ta esperando nóis.
Passados alguns minutos, Januário e Beto estavam com as mãos cheias de varas, iscas, anzóis e lampiões. E enveredaram por uma trilha escura em direção à casa do compadre Zé Matias.
Depois de caminharem por mais de uma hora, chegaram. A casa de Zé Matias, também era modesta. Tinha uma varandinha na frente, que dava para um enorme terreiro, onde outrora fazia-se a secagem do café.
Os dois pararam em frente da pequena casa e Januário bateu palmas, chamando: - Ô cumpadi, cumpadi Zé Matia... é o Januário!
A porta foi se abrindo devagar e a figura pitoresca de Zé Matias foi surgindo na penumbra. Parecia assustado e estendeu o lampião para identificar melhor de quem se tratava. Então disse: - Se aprochegue, cumpadi Januário. – Eu tô cum o primo Beto... – Se é de paz, pode chegá!
Januário e o primo Beto caminharam a passos lentos, até entrarem na casa. Enquanto Zé Matias os acomodava em um grande banco de taboa.
- Ta animado pra pescaria, cumpadi? – Perguntou Zé Matias – Ara, craro que tô cumpadi. E o primo Beto também tá. – Esse é aquele seu primo meio assim – Zé Matias gesticula com a mão – que viajô pro Rio de Janeiro pra aprendê aquelas frescuras da tar de facurdade?
Beto ficou irritado com o comentário de Zé Matias e disse irônico: - Primo meio assim nada. Eu sou é muito homem. Estou até noivo! – Ocê me discurpe primo Beto. É que quando ocê saiu daqui, todo mundo comento que o seu pai tinha te mandado pro Rio pra escondê a tua frescura. – Quer dizer que é isso que falam de mim por aqui? – Num liga não primo – disse Januário – o cumpadi ta cum dispeito porque nunca saiu daqui dessa cidade miserável. – E, e, eu já foi a Fêra de Santana – diz Zé Matias embaraçado – e quase fiu a Salvador.
Enquanto isso, Januário colocava um anzol na linha e verificava a flexibilidade da sua vara de pescar. Então disse: - Ara... vamo deixá de conversa fiada e vamo aprobeitá a lua cheia pra enxê os bornal de peixe. – Tem razão primo. Essa conversa está tomando um rumo que não estou gostando. – disse Beto – É, vamo aproveitá a lua cheia. O rio tem um montão de traíra esperando ser apanhada.
Subitamente, fortes batidas acompanhadas de gritos desesperados vieram da porta: “Abri, abri, abri a poirta moço, abri a poirta, que a mula sem cabeça vai me pegá”.
Os três permanecem em silencio, assustados olham uns para os outros e Zé Matias coloca o dedo indicador sobre a boca pedindo silencio. E cochicha: - Oces ouviro? A muié falô mula sem cabeça... – e as batidas frenéticas continuam. Até que Januário diz: - Acho mió nois abri! – Zé Matias corre para um canto da sala e apanha uma velha espingarda. Então diz: - Abri essa porta cumpadi, que eu tô preparado!
Januário com os olhos arregalados diz: - Ocê tem certeza? – Zé Matias gesticula positivamente. Então, Januário abre. Uma mulher negra entra correndo e gritando: - Fecha a poirta, moço... fecha pro bicho num entrá!
Os três ficaram estáticos olhando para a mulher aterrorizada.
Januário fecha apressado a porta e passa a mão no queixo, demonstrando certa incredulidade. Então diz: - Ara, muié... acho mió a sora ir la dentro da casinha pra lavá as parte...- diz Januário com um sorriso no canto dos lábios – porque a sora tá toda mijada.
Podia-se notar uma expressão de um riso assustado no rosto dos três.
Zé Matias, segurando sua espingarda e olhos arregalados pergunta: - Cês ouriru? A muié falô mula sem cabeça... – Ara, cumpadi Zé Matias... que mula sem cabeça quí nada!
Beto que até aquele momento permanecia calado, disse: - Eu já ouvi falar em coisas desse tipo. Dizem que são espíritos errantes, que assumem formas fantasmagóricas para pregarem peças nas pessoas. – Que isprito errante que nada... – diz Zé Matias – é a própia incarnação do Demo.
Januário caminha pela sala e diz: - Pelo sim pelo não, acho mió um de nois ir lá fora dá um jeito no bicho... – E quem é o maluco que vai la fora – falou Zé Matias assustado.
Januário, como todo bom matuto, que de tolo não tinha dada, disse imediatamente: - Craro que é o cumpadi Zé Matias...
Zé Matias aponta para si próprio e pergunta: - Mas porque eu?
Januário bota uma das mãos no bolso, dá um passo a frente e diz: - Ara, ômi... quem é o ômi, sujeito macho, mai valente daqui das redondeza? - Sô eu cumpadi – respondeu Zé Matias – Quem é o ômi, que arrancô o Demo debaixo da pedra puxado pelo rabo? – Fui eu cumpadi – respondeu novamente Zé Matias – E quem é o cabra macho, que vai lá fora dá um jeito no bicho? – silencio – Eu pregunto de novo... quem é o ômi muito macho, que vai la fora botá um cabresto na mulinha? – silencio – É ocê, cumpadi Zé Matias!
Zé Matias estava assustado demais para responder. Então, entra a mulher negra, que já havia se lavado, mas ainda estava fedendo. Então Beto pergunta: - Minha senhora, diga o que realmente viu!
A pobre mulher estava realmente assustada. Aproximou-se de Beto e agarrou-o pelo braço dizendo: - Moço, eu vi moço... uma mula preta sem cabeça. Eu tava indo la na beira do rio apanhá água pra fervê um café, quando vi o bicho na triia... ela bufô pro meu lado e impediu a minha passage de vorta pra casa... intão, eu corri praqui. Porque sei que o seu Zé Matias é ômi distemido e podia me protegê.
Januário estava prestando muita atenção, e aproveitando a deixa, diz incisivo: - Intão, eu num disse? O cumpadi Zé Matias é o ômi certo... é ele que vai la fora dá um jeito no bicho.
Contra fatos não há argumentos. Zé Matias percebeu que havia sido vítima das suas próprias mentiras. E não havendo outro jeito, ele disse: - E cumpadi... ocê tem razão. Num existe ninhum outro ômi aqui nas redondeza, que seja capaz de infrentá um bicho desse... eu vô lá. O cumpadi Januário pega aquela cartuchera 28 alí na parede, pega um outro lampião e mi dá cobertura.
Assim fez Januário. Armou-se com a velha espingarda e o lampião, e acompanhou Zé Matias até a varanda.
Zé Matias iluminou o terreiro limpo e caminhou intrépido em direção da vegetação. Januário observou-o até desaparecer mata a dentro.
Passaram-se uns dois minutos, quando Januário ouviu dois disparos. Os cabelos arrepiaram e as popilas dos olhos dilataram. Logo a seguir, ouve os estalos da vegetação quebrando e os gritos do compadre Zé Matias, que dizia: - Abre, abre a porta cumpadi, quí o bicho vem aí.
Januário caminhou até a metade do terreiro, engatilhou a espingarda e ficou parado, estático, enquanto Zé Matias passava apressado por ele e entrava aterrorizado na casa.
Passaram-se alguns minutos e o susto, quando todos perceberam que Januário havia ficado do lado de fora. Quando Beto perguntou: - Cadê o primo Januário?
Os três se entreolharam espantados com a ausência de Januário, quando este entra sorrindo.
Zé Matias com os olhos esbugalhados aproxima-se de Januário e pergunta: - Do que é que o cumpadi ta si rindo?
Januário, ainda com o sorriso nos lábios, diz: - Ara, sô... que diabo de mula sem cabeça que nada... ocês são um bando de troxa... era somente um boi preto pastando grama. Como ele tava cum a cabeça baixa, o cupim dele paricia um pescoço sem cabeça... oscês são memo uns troxa!
Nem sempre o que o coração sente, é o mesmo que os olhos vêem.
Rio de Janeiro, 18 de julho de 2007-07-18
Antonio Araújo de Freitas. (O Confidente)
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